sábado, 25 de outubro de 2008

Cega e por vezes surda...


Encontrei este texto e como a “cena” me pareceu um retrato tão actual dos nossos dias em pleno século XXI, apesar de passada nos começos do século passado, decidi partilhar… Enjoy it... or not!!!



“Naqueles antigos tempos em que tudo estava devidamente ordenado e os crimes eram raros bastava o bom senso do regedor para assegurar o castigo dos atrevidos e a paz dos povoados, só se recorrendo às Justiças nos casos graves, sendo que, nesses casos, os processos eram preparados todos e de ponta a ponta pelos Procuradores, que interrogavam, eles mesmos, queixosos, suspeitos, declarantes e testemunhas, de tudo se fazendo registo escrito, num cursivo certinho que era das virtudes principais dos escrivães.

Concluído o processo pelo Senhor Procurador, dele se dava vista ao Senhor Juiz, que marcava os Julgamentos dos celerados dos Réus, que desse modo se chamavam os acusados que agora se tratam respeitosamente e por arguidos.

E aconteceu num caso que ficou famoso e que meteu até advogado da capital (tendo o Réu vendido três courelas para pagar a defesa), que o Senhor Juiz desse caso, tendo todas as virtudes que se supõem nos Senhores Juízes, era surdo. Surdíssimo. O Juiz era surdo como uma porta. E sabe-se que a Justiça deve ser cega, mas surda... E o Senhor Juiz não tinha carta de condução nem sabia conduzir automóveis, que nesse tempo já existiam alguns, sendo sempre uma canseira convencê-lo de que numa descida de grande inclinação convinha mudar da terceira mudança (os carros desse tempo só tinham três velocidades para a frente), para a segunda, porque desse modo, seria mais segura a condução, porque o Senhor Juiz aprendera que a segunda mudança tinha mais força do que a terceira e quando algum réu de desastre de viação - que poucos eram mas já aconteciam nesse tempo - para mostrar que era prudente e perito, contava que no começo da descida mudara da terceira para a segunda, o Sr. Dr. Juiz, depois de lhe fazer várias perguntas, dizendo que precisava de esclarecimentos sobre o que o Réu dissera, para não se perceber que não ouvira nada antes, e de ter encorajado o réu a falar alto, que não estamos numa igreja, quando finalmente entendia, o Sr. Dr. Juiz não se aguentava Ah! Você, quando devia reduzir a velocidade do seu carro, meteu uma mudança com mais força! Grande motorista! Já lhe faço a cama!

Lá se levantava o procurador, que, a berrar, lhe dava os esclarecimentos necessários. - Ah! O senhor Procurador diz-me que, com uma mudança mais forte, o carro anda menos! Não está mal o engano, não senhor...

Nesse tempo, como toda a gente fora ouvida antes do julgamento e de tudo se lavravam actas, que todas formavam o Corpo de Delito, nome dado ao processo da investigação, e como, nesses tempos, as pessoas mentiam muito menos do que agora, os Julgamentos, regra geral, confirmavam os Corpos de Delito, dado serem raros, raríssimos, os casos em que neles não se tivessem exarado todas as provas do processo.

Mas naquele caso apareceu uma testemunha nova, que pôs tudo em questão, e o advogado da capital, para fazer jus às courelas de que despojara o seu cliente, fez discurso fogoso, tenso, extenso e intenso, protestando a inocência do réu. E com razão, porque não tinham ficado dúvidas sobre a inocência do dito – a tantos quantos tinham ouvido a dita cuja testemunha.
Terminadas as alegações, o Juiz e o Procurador retiraram-se para um cubículo existente ao lado da Sala de Audiências que servia de gabinete do Juiz, porque nesse tempo poupava-se tudo, porque já estavam gastos há muito os dinheiros da canela e da pimenta da Índia e os do ouro do Brasil e ainda não estavam a receber-se os subsídios de Bruxelas; por isso, os Tribunais eram frequentemente instalados na casa da Câmara Municipal, que muitas vezes estava num casarão que os liberais tinham tirado a alguma ordem religiosa, que o tinha obtido... Mudemos de assunto...

Saídos da Sala de Audiências, disse o Juiz ao Procurador: Fume lá um cigarro, porque temos que entreter meia hora antes de ler a sentença, que, claro, já está feita. Fi-la no passado fim-de-semana; mas, se a ler já, o advogado ficará incomodado, porque verá que a Sentença estava feita antes do Julgamento e, portanto, antes das suas alegações, que merecem ser respeitadas, porque devem ter sido boas. Entusiastas foram, porque o homem fartou-se de fazer gestos...

Cerca de meia hora depois reentraram na Sala de Audiências, prenhe de curiosos, o Sr. Dr. Juiz e o Sr. Dr. Procurador. Fez-se silêncio sepulcral (já terão notado que todos os silêncios são sepulcrais. Falta de imaginação...). O Juiz sisudo, o Procurador, jovem, com ar desportivo, a galar as raparigas da assistência, e o advogado sorridente, confiante, mais do que seguro da absolvição certa do réu. - Vai o réu condenado na pena de prisão...”


Eurico Heitor Consciência
Advogado/Vice-Presidente do Conselho Superior
Publicado no “Boletim da Ordem dos Advogados”
Nº 47 – Maio/Agosto 2007


Porque trabalho na área da advocacia, conheço alguns (muitos…) casos que acabaram como este… mal… apesar das provas e dos “pesares”… e porque temos uma justiça que se presume “cega sempre” mas que é, com toda a certeza, “surda”. De pedra! Basta vermos algumas das “histórias” que “povoam” os noticiários portugueses. É a justiça que temos... or not!!!


"Como está escrito: Não há um justo, nem um sequer."
Romanos 3: 10
Bíblia Sagrada

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixem aqui a vossa reação. Terei todo o gosto em vos ler. <3